30 março 2014

Sobre morte e sonho


Eu sempre acreditei que a vida fosse uma espécie de eternidade finita, uma passagem do material para um brilho estrelar, uma conspiração magnífica em ser feliz e não procurar o fim do que quer que fosse (porque um dia ele sempre chega, seja de um problema, de uma alegria, de uma realização ou de uma vida). Mas quando vamos crescendo, as estrelas cadentes deixam de ser o pedido que a gente sonha ao cruzar os dedos e passa a ser um risco rápido que num piscar de olhos é inevitavelmente esquecido. A gente vai crescendo, vai observando os carnavais passarem e de repente se depara com uma sexta-feira 13, um Halloween em plena Ação de Graças. A vida tenta, de todas as maneiras, cruéis e incrédulas, tirar a esperança, a fé e a visão de que o dia amanhã vai nascer, e com todo o clichê, que depois da tempestade sempre vem um sol. Nem que você faça um borrão dele no quintal de casa. Ele vem. E a gente nunca percebe isso.

Não nos ensinam a dizer adeus. Nunca. Minha infância foi marcada por uma música que até hoje me vejo cantarolar pelos cantos da casa. Ela dizia mais ou menos assim: "Professora, que corrige os erros meus, me ensina a dizer eu te amo, mas não me ensina a dizer adeus...". Até que o fim do ano chega, e aquela senhorinha que nos ensinou a ler, deixa de ser a nossa tia e agora a chamamos de tia Mônica, ou tia Simone ou tia Shirley, pra distinguir da que conheceremos no próximo ano. E então a gente aprende a respeitar, a pedir desculpas, a agradecer, a sorrir sempre, sempre que possível, porque tristeza, meu bem, é tudo que a gente não precisa nessa vida. Mas não nos ensinam as despedidas, o 'até logo', o 'a gente se vê por aí', e como diz a música, o 'adeus'. A gente não aprende a fechar o ciclo. O ciclo que desde tão novos aprendemos. Tão metódico, tão circunscrito no seu próprio mundo, tão completo, e ao mesmo tempo tão vago e real. A gente não aprende a dizer 'tchau', tampouco a recebê-lo. 

O tempo voa. A gente cresce. E se não tivermos cuidado com o que pensamos e escutamos, morrem os sonhos, desde muito cedo. Acredito nos sonhos como quem acredita na verdade. Tão fiel e exato quanto a metodologia dos conceitos prontos de felicidade descritos repetidamente nos livros de Augusto Cury. Se não são os sonhos que nos formam e nos guiam, eu não sei o que pode ser. Peço o perdão da palavra, mas é o sonho que nos derruba e que nos levanta. Puxa-nos e devolve-nos ao chão. Mas está sempre brilhando em algum lugar. O nosso digníssimo Augusto dos Anjos resumiu isso muito bem quando escreveu que "a mão que afaga é a mesma que apedreja". O sonho é assim. E isso serve pra tudo nessa vida. 

Retornando ao 'morrer' de fato, sem entrelinhas, sem parênteses, aspas ou ítálicos. Voltando ao morrer propriamente dito, o que tenho a dizer é que certas coisas não precisamos aprender a nos despedir. Com meu pensamento ainda de criança, eu sempre acreditei que a morte só viria numa velhice quase infinda, e que qualquer morte antes disso seria uma puta duma injustiça. Ainda acredito na teoria prática de que (e Cazuza que me desculpe) morrer dói, sim. Não no morto ou no defunto, como friamente falaria Machado de Assis. Mas dói. Dói na alma do próximo e (me desculpem a piada infame) na do distante. Dói naquele que sente, que vive e que está nesse mundo pra sonhar. Os sonhadores com tudo nesse mundo estão a desfalecer. Mas sempre há uma luz, uma fitinha do senhor do Bonfim da Bahia, uma nova promessa, um novo truque ou superstição para nos fazermos acreditar novamente no milagre da renovação. Há sempre uma rosa desabrochando num dia frio, um sol riscado no quintal de casa e uma criança te sorrindo, mostrando que tudo pode ser bem simples se enxergarmos além do nosso mundo.

Dani Fechine

22 março 2014

Amor com Rotina


Nossa história daria um filme. Ou um livro. Não porque nos aventuramos a sair da rotina todos os dias. Pelo contrário. Amor é rotina. Daria um best-seller pela simplicidade. Pela paciência, pelo carinho e companheirismo. Daria um livro só pelo fato da gente se amar sem sair por aí pra escancarar. Nós ganharíamos o Oscar de melhor casal, de melhor beijo ficcional, da melhor cena de amor que Hollywood já viu. Eu vou escrever um livro sobre nós dois. Sobre como foi ter você todos os dias ao meu lado com esse sorriso infindo, esse olhar penetrante que não me abandona segundo sequer. Vou escrever um livro sobre a nossa história convencional, embora a mais bonita do mundo, pelo simples fatos de nós dois sermos os protagonistas.

Meu prefácio é o nosso fim. Começarei o nosso livro contando do quanto a gente foi feliz a vida inteira. Que apesares aconteceram, que tropeços também tiveram aos montes, mas que nossas mãos nunca estiveram tão firmes uma na outra. Escreverei sobre o jardim que cultivamos desde noivos e que até hoje, na velhice companheira que nos fez cada dia mais vívidos, cultivamos como nosso amor. Não posso esquecer também dos filhos lindos que tivemos. Os meninos mais lindos do mundo que tornaram-se Peter Pan nos nossos corações. Seria também uma injustiça não falar de você. De como foi bonito te ver envelhecer. Ver os seus cabelos castanhos ficarem cada dia mais claros, e por fim, brancos. Falar de como eu me sinto feliz, leve e satisfeito por ter encontrado uma pessoa tão maravilhosa, por dentro, por fora, consigo, com os outros. Alguém que segurou a minha mão até perder as forças no leito de morte. Alguém que me faz agradecer, todos os dias, por ter tido uma pessoa que amou os meus defeitos, as minhas qualidades e todo o meu esquecimento precoce de uma velhice tardia.

O capítulo um seria intitulado de 24 horas. É a quantidade de horas por dia que eu sou feliz. Que eu amo. E que eu vivo pra te fazer sorrir. É a quantidade de horas que eu me lembro de como foi encantador te ver no altar, derramando as lágrimas mais sinceras que eu já pude tocar. De como foi doce dizer um “sim”, mesmo querendo gritar “para sempre”. É a quantidade de horas por dia que eu tento voltar para o dia que nos conhecemos e reviver todo aquele instante. O momento do primeiro encontro, a sua primeira gargalhada, o primeiro abraço de proteção quando eu achei que meu mundo estivesse implodindo naquele instante e o primeiro “eu te amo” que eu ouvi e guardei dentro da caixinha de música que você me deu no primeiro ano de namoro. 24 horas é o tempo diário que eu tento te fazer feliz, porque é isso que também me faz feliz.

O segundo viria sem palavras em seu título. Em branco. Que é como eu ficava ao acordar e admirar, de perto, de muito perto, a tua nunca e alisar os teus cabelos como se todo dia fosse o último dia da minha vida. Emudecer era a minha reação a cada surpresa que você me fazia fora de hora, fora de época, sem data, sem mês, mas com amor escrito em cada canto do mundo. Além do título, poderia deixar o próprio capítulo também em branco, porque as coisas mais lindas que você me falou foram no silêncio. Na paz de espírito. No amor que a gente dividia no olhar. Tudo de mais encantador que eu ouvi e li, foi no seu piscar de olhos lentamente, um pouco cerrados e brilhando como esmeraldas.

O capítulo três é de como eu sinto a sua falta, Emma. Ele iria se chamar “Vazio”. É o que ficou da nossa casa. Da poltrona rosa ao lado da minha, da escrivaninha com todos os seus cadernos, folhas, canetas. O vazio que você deixou no jardim, entre as flores. O nada que me faz tão cheio todos os dias. Esse vazio que me faz querer sentir o teu perfume entre as rosas, que me obriga a derramar uma lágrima sempre que não te vejo mais sentada onde deveria estar. Vazio é o lado da cama que você deixou com seu cheiro e ainda com seu jeito. É a xícara de café que eu não encho mais pra te levar na cama, o almoço de natal que não faz mais sentido, e os nossos aniversários de casamento que eu comemoro sempre com uma nova carta pra você. 

E todos os outros capítulos seriam uma dessas cartas escritas nos dias 22 de abril de cada ano. Cartas que te trazem de volta por algumas horas e que me fazem sentir a ausência mais presente do que todos os dias. Cartas de amor ridículas, como diria Fernando Pessoa, porque se há amor, tem de ser ridículas. Cartas das rotinas mais apaixonantes que eu vivia, porque você sempre me dizia que amor é amar a rotina. E eu amava. Amava você e amava a rotina que você me fazia viver, crescer e ser feliz. É por isso que todas essas cartas seriam experiências simples de uma vida simples de duas pessoas simples e de um amor simples. Cartas que fizeram de mim o homem mais saudoso do mundo, com o coração nostálgico. Uma saudade que não tem fim, dos seus olhos, do seu sorriso, do seu abraço protetor e desse carinho que ninguém nunca vai encontrar igual na vida.

Escreverei um livro sobre nós dois. E ele será a minha última carta para, enfim, te encontrar novamente, onde quer que esteja. Eu prometo, Emma. É o último ato corriqueiro que nós vamos realizar juntos. O único toque de amor que nós vamos deixar na Terra. A última semente de que vale a pena ter esperança num amor tranquilo. Escreverei o nosso livro e ele se chamará Amor com Rotina.  

Dani Fechine


Citação: “As cartas de amor, se há amor, tem de ser ridículas.” Fernando Pessoa

02 março 2014

O que é o amor?

Quando eu tinha sete anos, aquela professora que eu chamava de tia escreveu na lousa com letras garrafais a seguinte pergunta: O que é o amor? Complexo demais para uma criança que ainda estava aprendendo a ler e escrever. O dia das mães se aproxima e essas respostas fariam parte de uma coletânea entregue a cada uma. Li devagar e transcrevi, ainda que meio rabiscado, a tal frase na folha do caderno. Eu era a última da terceira fila, ia demorar um pouco chegar a minha vez. Eu saí da Terra e viajei aos lugares mais incríveis pra tentar descobrir o que essa palavra significava. Mas foi de supetão, no ímpeto de dizer "não sei" que a resposta chegou: "Amor, professora, é quando minha mãe me pega na escola com o sorriso mais lindo do mundo. Além de amor, isso também é o meu mundo. Então essa palavra que a senhora quer saber, é o mundo que eu tenho dentro de casa. É também aquele beijo de boa noite que ela me dá depois de contar a mesma história pela décima vez na semana. E o abraço de bom dia que eu recebo também é amor."

No meu aniversário de quinze anos, o meu pai fez um discurso no qual ele repetiu a mesma frase: O que é  o amor? Retornei à minha infância, olhei pra minha mãe. A amei naquele instante como nunca. Mas não pude deixar de acrescentar em meus pensamentos aquele garoto que iria dançar a valsa comigo algumas horas mais tarde. Eu dizia que o amava. E aos 15 anos o amor era sentir o frio na barriga, a mão trêmula e a garganta travada. Amor era desejar que o sinal demorasse um pouco mais a bater para que eu o avistasse mesmo que de longe. Amor era ficar corada de vergonha, mas não denunciar jamais com as palavras. Quado eu tinha quinze anos, amor era apenas embrulhar o estômago por um garotinho. 

Quando fiz trinta anos, e já tinha uma casa própria, um marido encantador e um filho tão esperto quanto a mãe aos sete anos, adesivei, em cima da prateleira que suporta os meus livros, a seguinte pergunta: O que é o amor? Olhava pra frase, olhava pro meu filho, olhava pro meu marido, e lembrava da minha mãe. Amor era família. Era doar-me a ela. Querer o bem de todos antes de pensar em mim. Naquele instante, amor era compartilhar. Era sobreviver a um almoço de domingo com todos os tios, tias e primos, mesmo depois de uma semana tão conturbada. Era ligar pra minha mãe só pra dar bom dia e dizer que a amava. Amor era colocar meu filho pra dormir, ler a mesma história pela décima vez na semana. Era buscá-lo no colégio sempre com um sorriso no rosto e acordá-lo com um abraço apertado. Amor também era ser casada com o pai do meu filho. Ela abrir os olhos de manhã e agradecer por companhias tão agradáveis e sentimentos tão sinceros. Amor era ter o carinho, a cumplicidade e a paz, no meu coração, na minha vida e na minha rotina.

Hoje, aos sessenta, amor é saudade. É folhear os álbuns antigos e querer a minha mãe de volta com meus sete anos de idade. É olhar para a poltrona vazia ao meu lado e perceber que mesmo na ausência, o amor ainda vence. É receber um telefonema do meu filho em plena terça-feira só pra me desejar boa noite e dizer que amanhã precisa me ver. É abrir o portão e me deparar com uma criança correndo em minha direção, com um sorriso ingênuo e sincero, querendo brincar com a vovó. Aos sessenta anos de idade, amor é nostalgia, mas é também dever cumprido. É deitar a cabeça no travesseiro e pensar que talvez eu não tenha definido bem o amor durante toda a minha vida, mas ter a certeza que o senti das maneiras mais intensas possíveis. E ao partir, ainda arrisco dizer que amor, meu bem, não se define. Amor a gente sente. 

Dani Fechine