Foto: Evandro Pereira |
Ivone Pereira Portela, que
demonstra um rápido impulso no olhar quando é chamada de Didi, tem 84 anos, mas
não se reconhece mais. O olhar silencioso mostra a sua mente vagando em algum
espaço que ainda está à procura. É composta de corpo, alma e coração, mas o
passado não habita mais a sua vida. Há mais ou menos 15 anos Dona Ivone convive
com a doença de Alzheimer e recebe de graça o amor e o carinho da filha
Clarinda, que largou a própria vida e se entregou a viver mais uma: a da mãe.
Didi é vaidosa, os olhos verdes
combinam com a estampa da blusa. Seu cheiro é de gente que tem saudade de si e
da vida, mas que não é infeliz por isso. De pernas cruzadas, com as mãos no joelho,
Dona Ivone brinca com os chinelos vermelhos combinados com a saia. Tudo isso é
obra de Clarinda que, sem deixar faltar amor, cuida da mãe como se fosse filha.
De início, Ivone se perdeu duas
vezes na rua e não sabia como voltar para casa. “A primeira vez uma colega
minha trabalhava perto da lagoa e percebeu que ela estava sozinha e
desorientada, então colocou ela dentro de um ônibus para casa. A segunda vez
ela foi à casa de uma amiga e não acertou voltar”, conta Clarinda Pereira.
Depois desses episódios, Dona Ivone passou a guardar os objetos em lugares
completamente diferentes dos habituais. A partir desse momento, os
profissionais entraram em cena. “Acho que a pessoa com Alzheimer não deve ser
tirada do lar e mamãe insistia em ir embora para Patos. Ela foi e lá percebi
que eu tinha que tomar conta. A pessoa com Alzheimer fora do seu lugar fica
mais perdida”, Clarinda explica.
Foi quando, por amor, por carinho
e por gratidão, abriu mão da própria vida. Cursava Ciências Contábeis e, mais
ou menos na metade do curso, parou. Clarinda agora cuida de uma criança de
oitenta e quatro anos. “Ela é minha mãe. É o meu tudo”, a filha não precisa de
explicações para se dedicar à saúde de Ivone. O amor basta para as duas que,
desde sempre, estiveram juntas. “Só nós duas”, Dona Ivone às vezes diz a
Clarinda, que acredita ser uma missão e está à disposição para cumpri-la até o
fim.
Ivone começou a esquecer até o
que havia comido. Ganhou peso e mais alguns esquecimentos. Adorava passear no
comércio aos sábados e, depois do Alzheimer, a senhora de olhos verdes não
queria mais entrar nas lojas. Inevitavelmente, a memória de amor que guardara
até o último momento, foi se perdendo. Não reconhecia mais os filhos, gravou
apenas o nome do mais velho e da mais nova. Clarinda nunca esperou por isso.
Não imaginava que sentiria o coração desfalecer antes do tempo. Mas quando Dona
Ivone não a reconheceu mais, parecia que a morte havia chegado antes do tempo.
“Foi quando eu senti mais. Isso pra mim foi a morte”, conta.
Clarinda agora é mãe e filha ao
mesmo tempo. Dona Ivone acorda às oito horas e vai logo tomar um banho, lavar o
corpo e esfriar a memória. Em seguida, toma a sua vitamina e descansa o resto
do dia na poltrona que fica na sala. Brinca com os chinelos e o lençol,
enquanto Clarinda faz os seus consertos de roupa. “Pra não enlouquecer eu
inventei de fazer costura, pra ver gente e fazer alguma coisa. Só consigo
trabalhar pela manhã, que ela está dando o cochilo dela”, relata.
Clarinda deixa claro e é fácil
concordar com ela. Cuidar de uma pessoa com Alzheimer requer conhecimento. De
causa e interior também. É preciso conhecer os detalhes, as vontades, as
necessidades e o limite do outro. É realmente como se fosse uma criança que não
fala, não anda e não consegue pedir o que deseja. A mãe precisa ter calma,
prestar atenção e entender. Além de manter uma rotina constante, uma atenção
diária, uma observação que não cessa. Com o tempo, a linguagem torna-se fácil e
já é imediata a atenção que a criança recebe. É preciso tempo para conseguir
tamanha sintonia. Profissionalmente, Dona Ivone recebe a visita de uma
fisioterapeuta dois dias na semana e de uma fonoaudióloga, para exercitar a voz
e melhorar a alimentação.
Clarinda nunca apanhou na vida,
muito menos da mãe. Mas hoje, como uma criança chateada nos braços da mãe, Dona
Ivone dá tapas no rosto da filha, mas já com pouca força. “No início quando eu
ia fazer a higiene dela, apanhava muito na cara”, Clarinda conta sorrindo.
“Quando ela percebe que eu estou mandando, ela faz por pirraça. É um menino
mesmo, só faz o que quer. Tem hora que ela sabe o que está fazendo”, completa.
Dona Ivone nasceu agora e ainda está aprendendo a lidar com esse mundo que não
a compreende. Mas já reconhece nos braços da mãe – ou da filha – o aconchego
que precisa.
O olhar de Clarinda é com amor.
Mas um amor que ultrapassa patologias. Um amor que reconhece no outro apenas a
necessidade de ajuda. Um amor sincero que não vê doença. “Se você for olhar a
doença, você chora, entra em desespero. Uma pessoa com Alzheimer precisa,
principalmente, de muito amor”, diz. E isso não falta para Ivone. Transborda em
abraços, em beijos, poemas e carinho. Transborda em cuidado, em atenção e
saudade, mesmo na presença, mesmo ao lado. E é recíproco. Dona Ivone só quer
carinho. E não é poupada disso.
“Os idosos com Alzheimer são
muito carentes, porque todos se afastam”, Clarinda relata. Mas, ainda assim,
Dona Ivone que prefere ser chamada por Didi, sorri e parece gostar das
brincadeiras de Clarinda. Ela pode, inclusive, não se reconhecer ao se olhar no
espelho, mas se alegra com os pequenos detalhes, porque felicidade não requer
sentido.
Dona Ivone sempre foi muito
dinâmica, sempre procurou fazer alguma coisa. Clarinda, inclusive, herdou dela
o gosto pela costura. Mas, de repente, foi deixando os seus costumes e hoje é a
filha que assume a casa. Clarinda costuma dizer que Dona Ivone não é mais a
mesma. É o corpo dela que está sentado na poltrona. “Cadê mainha? Mainha já se
foi. Acho que ela só está cumprindo o tempo dela”, desabafa. A saudade chega
antes mesmo da partida.
Tudo isso se chama agradecimento,
não cuidado. Clarinda já foi a filha acalentada nos braços de Dona Ivone, mas
hoje é ela que embala os sonhos da mãe. Como uma gravidez às avessas, filha e
mãe trocam de papel.
Dani Fechine (originalmente publicado no Jornal A União)