23 abril 2014

Como um míssil


Sentada em mais um desses cafés, debruçada em um Machado de Assis meio desacreditado, pude enfim avistá-lo. Ele chegou feito um furacão, derrubando todos os meus pensamentos soltos, todas as minhas angústias e preocupações. Se pediu licença? Sentou na primeira cadeira vazia que viu ao meu lado, tocou no meu ombro e falou pausadamente: chegou a hora. A partir daí não se encontrava mais nada sobre a mesa. O Machado de Assis foi cuidadosamente guardado, o porta guardanapos entregue a garçonete e um jarrinho de flores artificiais escanteado no pé da mesa. A conversa era séria e olho no olho era essencial. 

Arregacei um pouco as mangas da camisa de botão preta que vestia, me fiz confortável na cadeira, como se estivesse a brincar com uma criança ao chão e, simplesmente, não precisei mais apoiar os cotovelos na mesa, levar a mão até o queixo e fazer a cabeça doer de tanto pensar. Aconteceu. E foi maravilhoso, gratificante. Me senti orgulhosa do feito e resolvi marcar aquele lugarzinho perdido na cidade como o mais inspirador da minha vida.

Ele chegou de supetão, mas tomou conta de todo o meu tempo. O famoso insight, que faz a gente ser ainda melhor no que faz. Que melhora nosso humor e nossa maneira de aproveitar o restante do dia. Foi ele que se apossou completamente da minha frágil ansiedade de querer me colocar a todo instante em frente a uma máquina de escrever. E por ironia desse camarada, não havia a máquina, nem notebook, sequer um tablet ou alguma outra ferramenta que fizesse acelerar o meu processo criativo. Foi no bloquinho de notas que nunca sai da bolsa, o salva-vidas, que fui feliz numa tarde que tinha de tudo para ser monótona. Tirei-o com cuidado mas ao mesmo tempo com uma certa pressa. A caneta haveria de ser a de sempre. Superstição autoral deve ser levada à risca. 
Enfim, risquei a folha. Fui numa velocidade descomunal. Meus pensamentos corriam depressa, um sempre querendo ultrapassar o outro, embora soubessem que chegariam a um mesmo prêmio. Concentrei-me na folha azul e rabisquei o quanto pude. Daria um livro, se houvesse força suficiente para escrever com as mãos. Mas deu um texto. Dois. Três. E mais alguns. O último foi sobre como é incrível, fantástica e única a sensação de ter o que escrever e de sentir uma necessidade infinda de riscar o papel. É o que faço de melhor. E como diria minha querida Tati Bernardi, antes de tudo "tem que amar tudo que eu escrevo."

E foi assim que eu me esvaziei. Foi assim que eu me dei conta do que é escrever. E me recordo disso a todo instante de inspiração imediata e obrigatoriamente ininterrupta. Escrever é uma necessidade que transborda poesia. Vai muito além do que deve ser dito e ultrapassa todas as lacunas do seu coração, da sua alma e do seu querer. Com isso, tenho o dever de concordar com meu caro Bukowski: se não sai de ti a explodir, apesar de tudo, não o faças. 

Dani Fechine

13 abril 2014

Bom dia, amor


Foi quando eu te vi sentada naquele cantinho da sala, naquela cadeira velha que você nunca teve coragem de deixar num brechó, com um joelho levado até o queixo enquanto o outro pé riscava o chão e estampando nesse rosto delicado um sorriso que eu nunca vi igual. Tão encantador e inocente, tão hipnotizante e enfeitiçador, tão cheio de si e tão perdido ao mesmo tempo, que sempre me fez optar por ele do que por qualquer outro. Foi nesse momento de vislumbre distante que eu percebi que não há ninguém nesse mundo que faça um café melhor que o seu. Não há companhia mais entusiasmada para um vinho em plena terça-feira. Não há cabelos mais macios que os seus. Não há olhos mais brilhantes. Não há, simplesmente, alguém igual a você. É por isso e por te ver sentada, ali, com minha última camisa branca do armário, que eu percebi que não dá pra devolver o pacote depois que ele foi aberto. Não dá pra fazer parar o coração quando ele já cresceu o máximo que podia. Simplesmente não dá pra voltar atrás, quando o corpo todo já ficou.

Puxei uma cadeira - essa já um pouco menos gasta - e sentei ao seu lado. Você trocou a posição das pernas, deu um nó bem ágil no cabelo e deixou uma pedaço da franja cair sobre os olhos. Segurava agora um café quente e fixava em mim um olhar vidrante. Nesse momento eu também percebi que não trocaria o seu olhar pelo de nenhuma princesa de cabelos dourados. Pisquei os olhos devagar numa tentativa de dizer a mim mesmo que você era real. Que eu tinha uma pessoa magnífica sentada bem ao meu lado.

Pediu-me os óculos para melhor enxergar o livro que agora lia. Um Machado de Assis em época de desengano, que eu mesmo a havia presenteado. Pela manhã pouco se falava nos cantos da casa. Olhares e sorrisos tomavam conta de um lugar que se tornou diferente justamente pra não ser normal. Um lugar que não fala quando acorda, porque acordar nunca foi lá essas coisas. Mas que dá beijo de boa noite e acaricia os cabelo, porque dormir nunca deixou de ser um prazer. E nesse momento me dou conta de que você é a minha lente de contato. Caio em mim e percebo que se não tivéssemos esbarrado na mesma esquina eu ainda estaria acordando de mau humor e resmungando até o momento de dormir novamente. E iria deitar, virar pro lado e dormir, sentindo falta de algo que eu nem pensaria em ter, mas que quando eu tivesse, seria o encaixe perfeito do meu quebra-cabeça de duas peças.

Você levanta e com suas pernas longas e finas do lado de fora da camisa, caminha até a cozinha e põe a xícara na pia. Procura seus chinelos. Não encontra. Calça os meus e eu não ligo se o chão está frio. Me lança um olhar cerrado, jogando a franja novamente para trás. Lavamos a alma num banho a dois, num bom dia diferente de se pronunciar. E eu percebo que depois de você eu não posso mais acordar e pronunciar um "bom dia" de maneira clara e direta. Não dá pra apressar o que prolongado pode ser maravilhoso.

É quando eu te vejo todos os dias num ritual nada corriqueiro, me fazendo mudar de sorriso diariamente, me fazendo crer na doçura que é ter alguém pra segurar a mão quando o mundo vem te derrubando, me fazendo ser feliz com gestos simples ou apenas com sua existência. É quando você é a mesma diariamente - encantadora e real - que eu percebo que nada melhor que você poderia ter aparecido em minha vida. Então se veste para o trabalho e, com mais um café na mão, me beija os lábios e, enfim, diz: bom dia, amor.

Dani Fechine