04 novembro 2013

Carta de (des)culpa

"Pegue tudo que deixei no seu sofá cinzento, na sua cama desforrada, no guarda-roupa bagunçado e na sua vida desvairada. Beba aquele vinho seco que me faz lembrar você, naquelas taças que eram da minha avó e que talvez eu as ame mais do que qualquer outra coisa. Pode fazer isso sentado e na companhia de quem quiser. Mas não a coloque naquela poltrona que eu repaginei pra você. Levante dessa sua vida sem rumo, desamassa essa cara, cria uma história e, por favor, se cria novamente.

Deixei alguns dos meus cadernos na prateleira do quarto. Os pretos são os mais pessoais. Talvez você se encontre em algumas páginas, se tiver, ao menos, a curiosidade de lê-los. Talvez você queira bater na minha porta, me pedindo pra voltar, me implorando um amor que nunca te faltou, mas que você nunca se agarrou a ele. Se você abrir na página 18 do caderno marrom, verás que para tudo que aconteceu, houve uma explicação. E se folhear um pouco mais deixará cair algumas lágrimas. Mas, por favor, cuidado para não borrar a tinta preta da caneta que você me deu quando voltou daquela viagem sem fim pro outro lado do mundo.

Na página 20 eu quase te contei. Por questão de algumas linhas, alguns desvios de atenção e por muito amor, eu não saí correndo pelas ruas frias dessa cidade deprimente (sem você) pra te abraçar e, ao menos, te dizer um "até logo", "a gente se vê na próxima nuvem, na próxima estrela cadente" ou até "eu te amo". Eu quase mudei a minha vida e essa carta, quando escrevi a página 20. Mas quando passei a folha, os olhos já lacrimejavam à beça e sair sozinha com os olhos embaçados não me fariam chegar até você. Foi essa a desculpa que eu me dei pra continuar trancada dentro do sótão da casa dos meus pais. Eu criei desculpas o dia inteiro pra não pegar o meu casaco e ir em busca do seu sorriso, desse seu olhar que talvez me trouxesse de volta à vida. Fui mais forte que a minha insanidade e fechei o caderno. Virei para o lado e caí num sono profundo e só acordei no dia de dormir de novo. 

Já chegou na página 29? Desculpe-me. Eu não gostaria que fosse assim tão surpreendente, rápido, minucioso e desgastante. Espero que você esteja em boa companhia ou ao menos agarrado naquela almofada que compramos juntos – deixei, propositadamente, meu cheiro nela. Infelizmente, descobri muito tarde, e não poderia te deixar adoecer junto comigo. Seria egoísmo te fazer morrer aos poucos, só porque os meus dias estariam contados. Foi melhor sair assim, desavisada, despreparada, tentando deixar um ar raiva e desprezo dentro dessa casa. Da nossa casa.

Não culpe os outros por não te contarem. Acredite, nem quem te entregou esta carta sabia o que me rondava. Entrei em estado terminal muito antes do que eu imaginava. O que me preocupava era você e não eu. Desculpa se fiz vir à tona a raiva, o rancor, e agora a mágoa. Estou te escrevendo porque sei que lerá exatamente quando receber. Você não aguentaria não ter notícias minhas. Se é que um segredo é guardado mesmo, você foi o melhor deles.

Agora pegue aquela fotografia que tiramos no verão passado e que coloquei naquele quadro velho depois de umas boas mãos de tinta. Coloque os olhos em mim: esta é a última vez que me verás. Estou partindo. E onde eu estiver, estarei com saudades."

Dani Fechine

Nenhum comentário:

Postar um comentário

"Aproveita que a melhor parte é de graça e feita com mais amor do que cabe em mim." (Tati Bernardi)