27 outubro 2013

De tudo ao meu amor serei 'lamento'

Sentarei na beira da cama para calçar meus sapatos. Farei as malas delicadamente, sem pressa, para nada esquecer. Pentearei os cabelos pela última vez nessa penteadeira enferrujada, que recebi promessas de pintura durante os 3 anos. Não ligo para o que ficar. Faça bom proveito dos móveis e desses cômodos com cheiro de saudade. Quero apenas os meus chinelos, a garrafa de vinho que comprei semana passada e a escrivaninha, que depois de sete meses, consegui colocar no seu escritório intocável. Quanto aos livros, são todos meus. Cada página amarela, cada dedicatória. Estou saindo de mente vazia e coração aberto.

Não te esperarei chegar. Você não vai chegar. E eu demoro muito a acreditar. Odeio despedidas. Lamentos. E homens derramando lágrimas, verossímeis ou não. Saio na ponta dos pés para não deixar rastros. A chave está em cima da mesinha da sala, perto do arranjo que ganhamos dos meus pais no Natal passado. Só que sem o arranjo. Estou empacotando-o também. Sem a chave. E sem esse aviso.

Minto, amor. Saio de coração na mão. Peito sangrando. Sem ar. Sem fome. Sem vontade. Sem coragem. Com saudade. Com dor. Com uma vontade incessante de te encontrar, seja onde for. Saio porque seu cheiro ficou. Suas gravatas. Camisas. Sapatos. Até seus óculos ficaram. Esses levarei, talvez sejam-me úteis. Saio porque a xícara de café ainda está na cozinha. Suja. O iogurte foi aberto e ninguém tomou. O bolo foi deixado pela metade. E o almoço, nem comecei. Você não ficou pra almoçar. E não te verei no jantar. Saio de mente cheia, atordoada. Esquece os passos de bailarina. Saio correndo. Batendo a porta. Abrindo a garrafa de vinho dentro do elevador. Ofereço ao moço de bigode que dirige o táxi, mas ele não aceita. Me olha com cara de reprovação. Senti na pele a dor de uma loucura. Estou saindo de corpo e alma. De meia calça preta. Vestido preto. Sapatos pretos. Pintei até os cabelos.

Estou saindo de costas para não te ver em todos os lugares. Se pudesse, vendava-me. Os olhos estão pesados de maquiagem preta, muito rímel, muita tinta, muito carmin. Porque pior do que fazer uma mulher chorar, é deixá-la borrar a maquiagem por isso. Saio com o cheiro das suas roupas ainda nas minhas. Isso eu não consegui deixar. Não consegui deixar também o carinho. O beijo na testa. O abraço apertado. O 'bom dia' mal-humorado. As surpresas ao meio-dia. O jantar à luz de velas. O cartão de Natal. As bodas de papel. Não consegui deixar a marca do beijo. O toque das mãos. O alisar nos cabelos. O filme a dois. O medo protegido. A bagunça organizada. E o coração partido. Levo comigo apenas a certeza de te ter pra sempre.

Saio correndo. Batendo os pés. Fazendo birra. Não quero te ver no corredor ou correndo pra pegar o elevador. Isso não vai acontecer. Mas parece que dobrarei a esquina e te verei chegando com alguns doces comprados na confeitaria do bairro vizinho. Corro pra não dar satisfações ao seu Zé. Pra não te ouvir pedindo pra bater a porta ao sair. Estou saindo, meu bem. Estou saindo porque as fotos já me doem muito. O sofá tem dois lugares e eu sou só uma. As cervejas, sempre aos pares. As almofadas, com seu cheiro. O tapete, com seus chinelos. E o Fred, nosso cachorro-gente, está com uma depressão filha da mãe porque você não o levou pra passear na noite passada. Ele sente sua falta. E eu não consigo cobri-la. Saio pra te encontrar na copa das árvores. Nas estrelas do céu. Na Lua cheia. No balançar da flores. Nas folhas secas ao chão. No bom dia do padeiro. No moço simpático do trem. Saio pra te encontrar, em qualquer lugar que seja, mas que não seja na nossa casa. No nosso mundo. Na nossa vida. Essa lembrança ordinária de te ver em todos os lugares. Deitado na cama. Bagunçando o cabelo. Saindo apressado. E voltando numa pressa ainda maior e inadmissível, porque, afinal, esqueceu as chaves. E esqueceu de mim também. Esqueceu de me guardar numa gaveta. Num guarda-roupa. Ou de levar-me com você. Você esqueceu, meu bem, que amor não se morre. Que o corpo da gente vira cinza, enquanto o coração vira dor. Que a gente chora, enquanto o amor se exalta. Você esqueceu, com toda essa memória infinda, que a gente ainda não teve um casal de dálmatas pra cuidar. Ou bebês. Que seja. Você se foi antes dos 30. Ninguém se vai antes dos 30. Que injusto, que desumano. Estou batendo a porta, amor, mas você vem comigo. Estou saindo. Mas deixo a escova de dente, o travesseiro e o coração.

Dani Fechine

6 comentários:

  1. As vezes, sinto uma vontade forte de que essas fortes e apaixonantes palavras,
    fossem direcionadas para mim. Sonho. Espero. Me iludo. Não choro, apenas
    observo e sinto. Sinto por não ser, sinto por não ter.

    Sinto você.


    Você é a melhor e mais linda escritora.

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    1. Que amor! Fico grata pelos elogios.
      Beijo!

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    2. Não foram apenas elogios.
      Seu beijo, seria agora, o meu maior desejo.
      Um dia terei coragem para falar tudo o que sinto em mim,
      olhando em seus olhos e esperando com os dedos cruzados, que
      que você aceite o meu beijo, como forma de amor.

      Então, beijo!

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"Aproveita que a melhor parte é de graça e feita com mais amor do que cabe em mim." (Tati Bernardi)